ESCULÁPIO E A SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL – MÁRCIO BONTEMPO
Deus da medicina e da saúde para os gregos antigos, Esculápio teve duas filhas: Panacéia e Higéia, geradas com a função de cuidar da saúde dos mortais e a quem ensinou a nobre arte. A primeira tinha como princípio desenvolver e difundir recursos para tratar as doenças e a segunda, Higéia, ensinar os humanos a evitar as enfermidades, mas por meio da adoção de hábitos de vida naturais. Diz-se que elas viviam constantemente em conflito, para martírio do pai, que tentava a todo custo estabelecer a harmonia entre elas. De Higéia surgiu a palavra higiene e de Panacéia, a própria palavra panacéia, que tem o significado de remédio para todos os males. Curiosamente, é dos nomes e das características individuais das filhas de Esculápio, a origem das duas grandes correntes da medicina, uma voltada exclusivamente para a terapêutica (tratamento medicamentoso) e outra, para a prevenção, educação de hábitos, recuperação, manutenção e cuidados com a saúde (higiene).
Parece então que as medicina tradicionais antigas, até a época de Hipócrates, seguiram mais a escola de Higéia e menos a de Panacéia (restrita apenas a emergências e casos de acidentes, agravos, etc.), mas Galeno, médico grego do imperador romano Marco Aurélio, nítido devoto de Panacéia, divergindo do mestre Hipócrates, desenvolveu uma profusa farmacopéia sintomática, visando atender a nobreza romana nos seus males agudos derivados dos excessos e libações, ou seja, o sistema de Galeno não visava a recuperação integral da saúde e prevenção das moléstias, senão apenas tratar os sintomas. Nascia então uma prática que culminou no atual conceito-base da medicalização, cujo fundamento criou a indústria farmacêutica, dentro de um modelo de atenção à saúde centrado no médico (iatrocêntrico) e “hospitalocêntrico”, como expressão de uma visão biomédica cartesiana.
O ideal de Esculápio, até hoje, é estabelecer uma integração harmônica entre as filhas, o que significa inferir que a Medicina pode ser completa se unir as duas correntes, a terapêutica adequada e a prevenção. Diz-se que nos momentos em que Esculápio conseguiu um pouco de paz entre suas filhas, nasceram as grandes doutrinas médicas do passado, como o Aiurveda na Índia, a Medicina Chinesa, a Medicina árabe, egípcia, etc.
Quando foi criada a A Organização Mundial de Saúde, a princípio, Panacéia foi certamente a madrinha da instituição. Inicialmente, a visão do órgão internacional era fortemente centrada no medicamento como solução para todos os males da humanidade. Parecia que, com remédios, todos os problemas estariam solucionados. Ledo engano. Não resolveram. Foram exatamente as melhorias sanitárias e as ações fundamentadas em práticas de saúde culturalmente enraizadas que diminuíram a incidência e a prevalência das doenças infeciosas e não apenas o antibiótico, ou seja, resultado da ação de Higéia, certamente com uma pequena relativa ajuda da irmã.
Então a Organização Mundial de Saúde, desde Alma-Ata em 1978 (quando se definiu o fundamento da Atenção Primária à Saúde e a importância das medicinas tradicionais), colocou Higéia no pedestal das políticas internacionais de saúde, para desgosto da Indústria Farmacêutica amadrinhada por Panacéia.
Porém, tanto as ações de saúde quando a prática médica, sejam públicas ou privadas, seguiram obedecendo em grande parte à irmã ambiciosa de Higéia. E a briga continuou. Higéia, sempre amorosa e atenta, tendo inspirado já o Dr. Dawnson em 1920 (ver Relatório Dawnson, que estabelece as bases de uma visão social e da formação de redes de atendimento domiciliar ou descentralizado, realizado por equipes), prosseguiu na sua saga de produzir mudanças conceituais em termos de saúde pública para os governos. Mas sua irmã também não descansou. A indústria farmacêutica cresceu e, além da sua utilidade em descobrir novas drogas para salvar vidas, desenvolveu um forte sistema de lobbies nos governos, em sua ânsia de gerar imensos lucros com a exploração das moléstias. Panacéia ajudou. E fez isso principalmente através do ensino médico, trabalhando para manter sua característica cartesiana (ou flexneriana, como dizemos no jargão “sanitarês”), com forte foco na terapêutica medicamentosa. No Brasil, onde Panacéia tradicionalmente reinou absoluta, a força de Higéia começou a se tornar patente com os progressivos movimentos que desenvolveram o fundamento da Atenção Primária e o nascimento do Sistema Único de Saúde. Certamente era Higéia quem vibrava sobre as Conferências Nacionais de Saúde, ganhando tentos sobre sua irritadiça irmã, principalmente com a inclusão das Práticas Integrativas de Saúde na rede de atendimento. Paralelamente, Panacéia continuava a crescer com o avanço da tecnologia médica, tanto terapêutica quanto diagnóstica, dentro de uma visão reducionista do binômio saúde/doença.
Higéia insuflava na mente dos pensadores sanitaristas, principalmente no Brasil, o ideal da Reforma Sanitária e a postura corporativa e isolacionista de cada política pública como nociva do ponto de vista orçamentário e funcional. Mas Panacéia gosta de hospitais, de alta complexidade, de UTIs, de super especialistas, de médicos, de tomógrafos, sem conseguir entender que o processo de ultra-especialização do exercício médico gera uma tendência para a despersonalização da relação médico-paciente, favorecendo a perda da percepção integral da pessoa, relegando para segundo plano a dimensão social e psicológica do indivíduo, agora dividido em tecidos, órgãos, aparelhos e sistemas. Já Higéia ama agentes comunitários de saúde, equipes multidisciplinares, medicina natural, Terapia Comunitária Integrativa e médicos de família. Mas problemas e desafios persistem impedindo os avanços de Higéia, Por exemplo, a Equipe de Saúde da Família – cerne da Atenção Básica-, apesar das conquistas nos últimos anos, ainda enfrenta muitos entraves. Se Panacéia pudesse cuidar mais das emergências, da medicina tecnológica, da média e alta complexidade, etc. e Higéia da promoção e da educação em saúde, teríamos uma situação melhor, com o fomento do bem-estar e da qualidade de vida na base da sociedade, com isso a diminuição da procura dos serviços e a consequente redução dos enormes gastos públicos com a doença. Precisamos de medicamentos, mas o que certamente não precisamos é de um oneroso modelo de assistência demasiadamente centrado neles.
Claro que um modelo ideal de assistência à saúde depende de uma oferta de serviços que agrade ambas as deusas que, talvez não saibam, mas o pai certamente sim, que elas são os pratos de uma mesma balança.
Afora qualquer conotação maniqueísta ou polarizada quanto às características das deusas, percebemos que Panacéia continua muito forte na saúde pública brasileira, enquanto Higéia, depois de um bom avanço, parece ter agora empacado, uma vez que a Atenção Básica, com muitos problemas estruturais e funcionais, tem mostrado ares de estagnação. Higéia, contudo, ganha forças na maioria dos demais países. Então parece estar na hora de Esculápio olhar outra vez para o Brasil. Entonemos, pois, preces, odes e súplicas a Esculápio, na esperança que o deus nos acuda. Esculápio! Como um humilde servo mortal, por favor, ordene que Panacéia permita mais de espaço para Higéia neste sofrido país! Esculápio olhe essas filas nos hospitais! Olhe a falta de insumos! Olhe essa gente desassistida que espera meses por exames e cirurgias! Olhe a falta de uma gestão inteligente e de capacitação adequada para gestores em saúde, Esculápio! Olhe os lobbies de Panacéia no Congresso, Esculápio! Olhe os desvios de recursos do SUS, Esculápio! Olhe o descumprimento da Emenda 29! Protege a Portaria 971! Incute compromisso social e consciência cívica nas almas dos servidores, Esculápio! Olhe o sucateamento das unidades de saúde! Com todo o respeito, lance seus sagrados eflúvios sobre a saúde pública no Brasil, Esculápio! Esculápio, já que você nos inspirou na criação do nosso sistema de saúde, ó divino senhor, salve então o SUS!
Assina: Marcio Bontempo, seu humilde devoto e servo, discípulo de Hipócrates.
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